Capitão Fantástico (2016)

Viggo Mortensen encabeça um drama familiar sobre educação, sociedade eNoam Chomsky.

CAPTAIN FANTASTIC

Que tipo de vida queremos para nós e para os nossos filhos? Haverá margem para uma educação fora de norma numa sociedade que desdenha e recusa o que é diferente? As questões formam-se como claro ponto de partida para “Capitão Fantástico”, filme protagonizado por Viggo Mortensen e que chega esta semana às salas de cinema. Mas são também as mesmas questões que ecoam como ponto de chegada no final da sessão, longe de uma resposta preto no branco, continuamente negada no drama de Matt Ross.

Não faltam filmes, na história do cinema, centrados em perspetivas sobre educação. Mas nunca nenhum chega ao âmago do que este “Capitão Fantástico” nos traz. Extraordinariamente corajoso, de uma beleza estética e filosófica incomum, é também uma mensagem repleta de labirintos e areias movediças, em que facilmente abraçamos e repelimos a visão de Ben Cash (Viggo Mortensen), de forma quase simultânea. Mais uma vez, não há respostas certas; há caminhos que se vão adaptando.

O arranque do filme é arguto, por parte de Ross. Encontramos Ben e os seus seis filhos – Bo, Kielyr, Vespyr, Rellian, Zaja e Nai – camuflados com lama, em plena natureza selvagem do Noroeste Pacífico. A missão? Caçar o jantar, naquele que é também um rito de passagem da juventude à idade adulta para o filho mais velho, Bo. Selvagens? Numa luta desesperada por sobrevivência? Os rótulos estereotipados com que poderíamos analisar esta estranha família acabam por escassear face ao que a narrativa nos revela. Depois de limpa a lama, esta família invulgar lê livros complexos, toca música e partilha uma ternura e lealdade gutural.

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Longe da civilização, Ben educa os seus filhos segundo os seus ideais. Em pleno contacto com a natureza, numa lógica de sustentabilidade e auto-suficiência, a educação é rigorosa a nível intelectual e físico. Caçam-se animais com as próprias mãos, sobem-se falésias sem rede de segurança e há planos de leitura obrigatórios, que incentivam à interpretação crítica do mundo. Pelo meio, a crítica feroz às religiões e ao consumismo, assim como o beijo à liberdade. E a substituição do Natal pelo dia de Noam Chomsky, filósofo e activista norte-americano. Faz sentido? Talvez, caberá a cada um dos espectadores pensar de sua justiça, num eco à inversão do convencional raramente questionado.

A narrativa caminha, naturalmente, para o choque entre a realidade desta família e a realidade da sociedade norte-americana.  O rastilho faz-se com a morte de Leslie, a mãe da família, ausente da selva para procurar cuidados médicos convencionais, e a odisseia para que as crianças lhe possam dizer um último adeus.

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A saída forçada do ambiente natural – feita num autocarro escolar típico que agora acolhe outras lições do mundo – gera conflitos expectáveis. Da família face o mundo, do mundo face à família e também internamente, expondo feridas que nunca tiveram oportunidade de sarar. Os filhos de Ben são extremamente saudáveis e inteligentes, ninguém o pode negar, mas falta-lhes destreza social e conhecimento de senso comum, fora dos livros. Falhas que, rapidamente, levam Bo e Rellian ao confronto com o pai.

Destes conflitos, Viggo Mortensen sobressai com uma dureza obstinada, ainda que quebrada, por vezes, por uma vulnerabilidade subtil. O actor assume-se como o “Capitão” de um elenco de jovens talentos da representação, transpirando a presença  forte a que já nos acostumou. Já encarnou o mítico Aragorn, em “O Senhor dos Anéis”, é certo, mas este Ben Cash dá mais terreno a Viggo para ousar os limites, fora da zona de conforto.

Adivinha quem veio para jantar

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O filme dirige-nos para a empatia deste modo de vida tão diferente do que é a norma, mesmo quando há reticências sobre a forma extrema e rigorosa com que as crianças são educadas. A mesa do jantar entre as crianças e os seus primos, educados de forma convencional, é o palco perfeito do choque de visões de educação e parentalidade. Matt Ross sabe-o e não hesita em explorar o ponto de conflito: é mais condenável uma criança que se arrisca na natureza, é tratada como um adulto e conhece a brutalidade da sobrevivência  do que a criança constantemente infantilizada e dependente de telemóveis e consolas? Não há resposta fácil… e talvez não haja resposta, de todo.

À medida que esta roadtrip pouco convencional se aproxima do seu fim, é difícil perceber o que seria considerado um final feliz para Ben e para a sua família. Deixar as crianças ao cuidado dos avós, no cerne do consumismo que aprenderam a desprezar? Ou rumar novamente à selva, numa visão tão própria do mundo, ocultada da troca de argumentos com o resto da sociedade? Talvez um meio-termo, damos por nós a pensar ao longo do filme. Mas conseguiria uma educação num meio-termo não ser esmagada pelo normativo social… e pelo silêncio?

Somando tudo, “Capitão Fantástico” poderia apresentar-se como uma produção… interessante. Mas, aprendemos com Ben, “interessante” é uma não-palavra, usada como protocolo social daquilo que é oco. Preferimos dizer que “Capitão Fantástico” é arrebatadamente ousado, do início até ao final, em entrelinhas de possibilidades. Mais do que uma janela do mundo, o cinema pode existir como forma de pensar e questionar o mundo. E, aqui, “Capitão Fantástico” sai-se com mestria, sem infantilizações.

Clementine

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